Become a member

Get the best offers and updates relating to Liberty Case News.

― Advertisement ―

spot_img
InícioNewsMundoA Lei Kandir e a Metamorfose do Federalismo Fiscal Brasileiro: Uma Análise...

A Lei Kandir e a Metamorfose do Federalismo Fiscal Brasileiro: Uma Análise Exaustiva da Desoneração das Exportações e seus Impactos Estruturais (1996-2024)

Introdução

 

A Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, universalmente denominada “Lei Kandir”, transcende a sua natureza de diploma legal tributário para se constituir como um dos eixos mais complexos e controversos da economia política brasileira contemporânea. Concebida no calor da estabilização monetária do Plano Real, a legislação alterou tectonicamente a estrutura do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), impondo a desoneração das exportações de produtos primários e semielaborados.

Embora a premissa econômica da lei — “não exportar tributos” para garantir competitividade internacional — seja amplamente aceita na teoria fiscal moderna, a sua implementação no arranjo federativo brasileiro gerou desequilíbrios profundos. Ao retirar a competência dos estados para tributar a saída de suas riquezas naturais e agrícolas, sem instituir um mecanismo de compensação financeira automático, perene e suficiente, a Lei Kandir desencadeou uma “guerra fiscal” vertical entre a União e os Entes Subnacionais que perdurou por mais de duas décadas.

Este relatório disseca a trajetória da Lei Kandir, desde a sua gênese no Ministério do Planejamento sob a tutela de Antônio Kandir, passando pela judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF) através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 25, até o acordo histórico materializado na Lei Complementar 176/2020 e a sua superação conceitual pela Reforma Tributária de 2023 (Emenda Constitucional 132). A análise a seguir não se limita aos números, mas explora as implicações de segunda e terceira ordem sobre a desindustrialização, a reprimarização da pauta exportadora e a sustentabilidade das contas públicas estaduais.

1. Gênese Histórica e Econômica: A Estabilização do Real e o Imperativo das Divisas

 

1.1. O Cenário Macroeconômico de 1996

 

Para compreender a profundidade da intervenção promovida pela Lei Kandir, é imperativo revisitar o cenário macroeconômico de meados da década de 1990. O Brasil havia recém-superado a hiperinflação com o sucesso do Plano Real (1994), ancorado em uma política cambial que, inicialmente, valorizou a moeda nacional frente ao dólar. Essa sobrevalorização, essencial para quebrar a inércia inflacionária, gerou um efeito colateral severo: o encarecimento dos produtos brasileiros no exterior e o barateamento das importações, resultando em déficits comerciais crescentes que ameaçavam a solvência externa do país.

A equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso, liderada no Ministério do Planejamento por Antônio Kandir, diagnosticou que o “Custo Brasil” — e especificamente o componente tributário cumulativo — era o principal entrave para a geração de divisas necessárias para sustentar o balanço de pagamentos. O ICMS, sendo um imposto sobre valor agregado de competência estadual, incidia pesadamente sobre as cadeias de produção, exportando o custo tributário junto com a mercadoria.

 

1.2. A Ruptura do Pacto Federativo de 1988

 

A Constituição de 1988 foi marcada por um espírito descentralizador, fortalecendo as finanças estaduais e municipais em detrimento da União. No entanto, a crise da dívida dos estados nos anos 90 reverteu essa lógica, inaugurando um período que a literatura especializada, citada em estudos jurídicos, denomina de “federalismo predatório” ou “rescentralização fiscal”.

Neste contexto, a União utilizou sua hegemonia política e a vulnerabilidade fiscal dos governadores para aprovar a Lei Complementar 87/96. Relatos históricos do processo legislativo indicam que a tramitação do Projeto de Lei Complementar nº 95/1996 ocorreu sob intensa pressão da tecnoburocracia financeira federal. A votação foi realizada “a toque de caixa”, atropelando as resistências dos estados produtores de commodities, sob a promessa política — que se provaria frágil — de que a União compensaria integralmente as perdas de arrecadação através de um “seguro-receita”.

O argumento central de Antônio Kandir era de que a desoneração provocaria um choque de oferta e um aumento tão expressivo no volume exportado que a atividade econômica induzida (emprego, renda e consumo interno) compensaria a perda de receita direta do imposto na exportação. Contudo, essa equação não considerou a rigidez das despesas públicas estaduais e a concentração geográfica das perdas em estados com baixa densidade industrial, onde o efeito multiplicador do consumo é menor.

2. Arquitetura Jurídica e Mecânica Tributária da LC 87/1996

 

A Lei Kandir não apenas isentou as exportações; ela alterou a mecânica de apuração do ICMS de uma forma que maximizou o benefício ao exportador e o prejuízo ao erário estadual.

 

2.1. O Princípio da Não-Cumulatividade e a Manutenção de Créditos

 

A inovação mais agressiva da lei residiu na garantia de manutenção e aproveitamento dos créditos de ICMS. Pela lógica clássica dos tributos sobre valor agregado, quando a saída da mercadoria é isenta, o contribuinte deve estornar (anular) os créditos tributários obtidos na compra dos insumos, pois não houve tributação na etapa final. Se não houvesse o estorno, o estado estaria, na prática, devolvendo um imposto que ele sequer arrecadou na etapa anterior.

A Lei Kandir, entretanto, determinou expressamente que os exportadores não precisariam estornar os créditos. Mais do que isso, permitiu que esses créditos acumulados (já que não havia débito na saída para compensá-los) fossem utilizados para:

  1. Abater débitos de ICMS de operações internas (vendas dentro do estado).
  2. Serem transferidos para outros contribuintes do mesmo estado (venda de crédito).
  3. Serem ressarcidos em espécie pelo governo estadual.

Essa mecânica criou um “rombo duplo” para as finanças estaduais: o estado perde a arrecadação na exportação (imunidade) e ainda é obrigado a aceitar “papéis” (créditos escriturais) para quitar o imposto de operações internas que, de outra forma, seriam pagas em dinheiro, ou pior, acumula uma dívida de ressarcimento para com as empresas exportadoras.

 

2.2. A Extensão aos Produtos Primários e Semielaborados

 

Antes da Lei Kandir, a Constituição Federal autorizava a desoneração de produtos industrializados, mas permitia a tributação de produtos primários (soja, minério bruto) e semielaborados (ferro-gusa, celulose, couro). A lógica era que o país deveria desestimular a exportação de matéria-prima bruta para incentivar o processamento interno.

A LC 87/96 derrubou essa barreira, estendendo a desoneração a qualquer mercadoria destinada ao exterior. A definição de “semielaborado” tornou-se irrelevante para fins de tributação na exportação, eliminando o diferencial tributário que protegia a indústria local de processamento. Críticos apontam que essa medida foi decisiva para o processo de “reprimarização” da pauta exportadora brasileira, pois tornou mais lucrativo exportar o grão de soja in natura (isento) do que processá-lo internamente para fazer óleo ou farelo (cujas vendas internas seriam tributadas).

 

2.3. A Questão do Transporte

 

A amplitude da desoneração gerou batalhas jurídicas específicas, como a tributação do serviço de transporte vinculado à exportação. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou o entendimento de que, se o transporte integra o preço de venda do bem exportado (cláusulas CIF), tributar o transporte seria equivalente a tributar a exportação, violando o espírito da Lei Kandir. Essa interpretação ampliou ainda mais as perdas estaduais, retirando o ICMS-Transporte da base de cálculo nas cadeias logísticas de exportação.

3. A Dimensão do Prejuízo: A Guerra dos Números e o Mapa das Perdas

 

A quantificação do impacto financeiro da Lei Kandir é o cerne do conflito federativo. Não existe um consenso aritmético, mas sim narrativas metodológicas divergentes entre o Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), que representa os estados, e o Ministério da Economia.

 

3.1. Metodologia de Cálculo das Perdas

 

Os estados calculam as perdas com base no “potencial arrecadatório frustrado”: aplicam a alíquota interna de ICMS sobre o volume total das exportações desoneradas e subtraem as compensações parciais recebidas. Sob essa ótica, o prejuízo é direto e cumulativo.

A União, historicamente, argumentou que esse cálculo ignora a elasticidade-preço da demanda: sem a desoneração, o volume exportado seria menor, e a atividade econômica (e a arrecadação de outros impostos) seria reduzida. No entanto, estudos do IPEA indicam que, para estados com base exportadora primária, os repasses federais foram sistematicamente insuficientes para cobrir a perda de receita, mesmo considerando os efeitos dinâmicos na economia.

 

3.2. O Panorama das Perdas por Unidade da Federação (1996-2017)

 

Dados consolidados apresentados à Câmara dos Deputados e ao Senado revelam a magnitude da sangria fiscal, concentrada fortemente nos estados exportadores de minério e grãos. A tabela a seguir sintetiza as perdas acumuladas brutas, segundo dados dos Secretários de Fazenda, no período de vigência da lei até o acordo de 2017/2020:

 

Unidade da FederaçãoPerda Total Acumulada (1996-2017)Perfil da Exportação PredominanteImpacto Relativo
Minas GeraisR$ 100,7 bilhõesMinério de Ferro, CaféCrítico. Principal causa da crise fiscal do estado.10
Mato GrossoR$ 63,4 bilhõesSoja, Milho, AlgodãoAltíssimo. Estado com maior relação Exportação/PIB.
ParanáR$ 54,0 bilhõesSoja, AgroindústriaAlto impacto na região Sul.
Rio Grande do SulR$ 47,3 bilhões (bruto)Soja, Indústria, TabacoRepresenta anos de déficits fiscais estaduais.12
ParáR$ 38,5 bilhões a R$ 67,5 bilhõesMinério de Ferro, BauxitaExtrativismo mineral sem contrapartida tributária de valor agregado.10
São PauloR$ 6,0 bilhões (apenas 2017)Indústria DiversificadaDiluído devido à enorme base de consumo interno.
GoiásR$ 26,4 bilhõesAgronegócioImpacto significativo no Centro-Oeste.10
Espírito SantoR$ 35,6 bilhõesPetróleo, Minério (Porto), AçoDesproporcional ao tamanho do território devido à logística portuária.
BahiaR$ 22,5 bilhõesAgronegócio, PetroquímicaPerdas relevantes no oeste baiano e polo industrial.

Fonte: Dados compilados do CONFAZ e apresentações na Câmara dos Deputados.10

Análise Regional:

  • Minas Gerais e Pará: A situação destes estados ilustra a crítica à extração de recursos não renováveis. Diferente da soja, que é plantada anualmente, o minério exportado é um ativo que desaparece. A Lei Kandir impediu que o estado capturasse parte da renda mineral (“rent”) via impostos sobre consumo/circulação, restando apenas a Compensação Financeira (royalty), que possui alíquotas historicamente baixas se comparadas à carga tributária do ICMS.14 Em 2016, por exemplo, o Pará perdeu R$ 3,1 bilhões em um único ano, valor que, segundo a FAPESPA, poderia duplicar os investimentos em educação no estado.
  • Mato Grosso e o Centro-Oeste: A explosão do agronegócio ocorreu sob a vigência da Lei Kandir. O estado de Mato Grosso argumenta que arca com os custos de infraestrutura pesada (estradas destruídas por caminhões de soja) para viabilizar uma exportação que não deixa ICMS nos cofres estaduais. A Associação Mato-grossense dos Municípios (AMM) foi uma das protagonistas na pressão pela compensação, visto que 25% do ICMS perdido pertenceria às prefeituras.

4. A Saga das Compensações: Do “Seguro-Receita” ao Vácuo Legal

 

A história da Lei Kandir é, fundamentalmente, a história de uma promessa de compensação não cumprida em sua plenitude.

 

4.1. O Colapso do Mecanismo Original

 

O texto original da Lei Complementar 87/96 previa um “seguro-receita” que garantiria repasses automáticos caso a arrecadação do estado caísse. Esse mecanismo funcionou parcialmente até o início dos anos 2000, mas foi progressivamente desidratado. Com a Lei Complementar 115/2002, a garantia automática foi extinta, dando lugar a um sistema discricionário.

A Emenda Constitucional nº 42, de 2003, tentou resolver o impasse constitucionalizando o direito à compensação. O artigo 91 do ADCT determinou que uma lei complementar definiria os critérios, prazos e condições dos repasses. No entanto, o Congresso Nacional, por omissão e falta de consenso político sobre a origem dos recursos, jamais aprovou essa lei regulamentadora nos anos subsequentes.

 

4.2. A Era do FEX e a Barganha Política

 

Diante do vácuo legal, a compensação passou a ser realizada através do Auxílio Financeiro para Fomento das Exportações (FEX). O FEX não era uma obrigação legal automática, mas sim uma verba orçamentária negociada anualmente.

Isso transformou a compensação da Lei Kandir em uma ferramenta de controle político: o Governo Federal liberava os recursos do FEX (geralmente no final do ano) apenas quando necessitava de apoio dos governadores para aprovar pautas no Congresso, como ajustes fiscais ou reformas. O montante repassado via FEX era sistematicamente inferior às perdas calculadas pelos estados — em 2015, por exemplo, a União compensou menos de 9% das perdas estimadas.

Essa instabilidade levou governadores a assinarem documentos como a “Carta de Diamantina” em 2017, denunciando a “espoliação tributária” e a omissão federal que prejudicava a implementação de políticas públicas básicas.

5. A Judicialização e o Papel do STF: A ADO 25

 

O impasse político forçou os estados a buscarem o Poder Judiciário. O estado do Pará, um dos mais prejudicados proporcionalmente, ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 25.

 

5.1. A Declaração de Mora Legislativa

 

Em novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal proferiu uma decisão histórica. A Corte reconheceu que o Congresso Nacional estava em mora (atraso) inconstitucional por não ter regulamentado o artigo 91 do ADCT. O STF estabeleceu um prazo de 12 meses para que o Legislativo aprovasse a lei compensatória.

A decisão continha uma cláusula de penalidade severa: caso o Congresso não agisse no prazo, caberia ao Tribunal de Contas da União (TCU) fixar os valores a serem repassados, o que retiraria do Governo Federal o controle sobre o orçamento das compensações.

 

5.2. O Caminho para o Acordo

 

O Congresso não cumpriu o prazo de novembro de 2017. Diante do risco fiscal de uma decisão unilateral do TCU (que poderia arbitrar valores na casa das dezenas de bilhões anuais, baseando-se nos cálculos do CONFAZ), o Ministro Gilmar Mendes, relator da ADO 25, prorrogou o prazo e instaurou uma comissão especial de conciliação.

Essa mediação envolveu governadores, o Ministério da Economia, as presidências da Câmara e do Senado, resultando, após anos de tratativas, no acordo homologado em maio de 2020.22

6. A Solução Definitiva: A Lei Complementar 176/2020

 

O acordo federativo foi materializado na Lei Complementar nº 176, sancionada em 29 de dezembro de 2020. Este diploma legal encerrou oficialmente a disputa judicial, trocando um passivo jurídico incerto por um fluxo financeiro garantido.

 

6.1. O Montante e o Cronograma Financeiro

 

A LC 176/2020 estabeleceu a transferência obrigatória de R$ 58 bilhões da União para os entes subnacionais, escalonados em um horizonte de 17 anos (2020 a 2037). Além do montante fixo, foram previstos recursos condicionais, totalizando um pacote potencial de R$ 65,6 bilhões.

A estrutura de repasses foi desenhada para garantir estabilidade na primeira década e uma transição gradual (“phase-out”) na segunda fase:

Tabela: Cronograma de Repasses da LC 176/2020

 

PeríodoValor Anual (R$)Montante Acumulado na Fase (R$)Característica do Repasse
2020 a 2030R$ 4,0 bilhõesR$ 44,0 bilhõesValor fixo, constante e obrigatório.24
2031R$ 3,5 bilhõesRedução de R$ 500 milhões.
2032R$ 3,0 bilhõesRedução progressiva.
2033R$ 2,5 bilhõesCoincide com a transição da Reforma Tributária.
2034R$ 2,0 bilhõesRedução progressiva.
2035R$ 1,5 bilhãoRedução progressiva.
2036R$ 1,0 bilhãoRedução progressiva.
2037R$ 0,5 bilhãoR$ 58,0 bilhões (Total)Extinção definitiva da compensação.24

Além dos R$ 58 bilhões, o acordo incluiu:

  • R$ 4,0 bilhões condicionados aos leilões de petróleo dos blocos de Atapu e Sépia (Bacia de Santos).
  • R$ 3,6 bilhões condicionados à aprovação da PEC do Pacto Federativo.24

 

6.2. Os Coeficientes de Distribuição (Quem ganha o quê?)

 

A distribuição desse bolo não seguiu critérios populacionais (como o FPE), mas sim uma fórmula híbrida baseada nos coeficientes históricos da Lei Kandir e do FEX, refletindo as perdas passadas. Os coeficientes fixos foram anexados à própria lei (Anexo I) e são imutáveis para os repasses principais.

A tabela abaixo detalha os coeficientes dos estados mais impactados, revelando a geografia política do acordo:

 

EstadoCoeficiente de Participação (Anexo I LC 176)Estimativa de Repasse Anual (Base R$ 4bi)Análise do Coeficiente
São Paulo (SP)31,14180 (31,14%)~R$ 1,24 bilhãoMaior beneficiário absoluto. Reflete o volume massivo de exportações industriais e a força política na negociação do FEX histórico.26
Minas Gerais (MG)12,90414 (12,90%)~R$ 516 milhõesSegundo maior coeficiente. Garantiu recursos vitais para o acordo de recuperação fiscal do estado.26
Rio Grande do Sul (RS)9,20387 (9,20%)~R$ 368 milhõesValor relevante para um estado em crise fiscal crônica.28
Mato Grosso (MT)6,63417 (6,63%)~R$ 265 milhõesReflete a potência agroexportadora, superando estados muito mais populosos.
Pará (PA)4,36371 (4,36%)~R$ 174 milhõesConsiderado baixo pelo governo local frente às perdas da mineração, mas complementado por coeficientes maiores nos repasses de petróleo (Anexo II, Coluna A: 6,73%).26

Nota: Os municípios recebem obrigatoriamente 25% do valor destinado ao seu estado, conforme determinação constitucional repetida na LC 176/2020.30

 

6.3. A Contrapartida: A Renúncia ao Direito de Ação

 

O “preço” pago pelos estados para garantir esses recursos foi a segurança jurídica para a União. O artigo 5º da LC 176 exigiu que, para receber os repasses, cada ente federativo deveria formalizar, em até 10 dias úteis, a renúncia expressa a qualquer ação judicial presente ou futura que cobrasse perdas da Lei Kandir.

Essa exigência gerou uma corrida burocrática no final de 2020. O Rio Grande do Sul, por exemplo, precisou aprovar uma lei estadual (Lei 15.577/2020) em tempo recorde para autorizar o governador a assinar a renúncia e garantir o ingresso da primeira parcela ainda em dezembro de 2020.28 A AMM mobilizou prefeitos em Mato Grosso para garantir que nenhum município ficasse de fora por falta de assinatura no sistema Siconfi.

7. O Debate Econômico Setorial: Desindustrialização vs. Competitividade

 

A Lei Kandir não é neutra do ponto de vista da estrutura produtiva. Ela gera vencedores e perdedores setoriais, alimentando um debate acadêmico e corporativo intenso sobre o modelo de desenvolvimento brasileiro.

 

7.1. A Indústria e a Tese da “Reprimarização”

 

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e diversos economistas estruturalistas criticam a Lei Kandir por incentivar a “reprimarização” da pauta exportadora. O argumento é que a desoneração linear (aplicada tanto à soja bruta quanto ao óleo de soja, tanto ao minério de ferro quanto ao aço) retirou o incentivo tributário para agregar valor internamente.

Estudos sobre o Complexo Soja mostram uma queda na participação de produtos processados (farelo e óleo) nas exportações brasileiras após a Lei Kandir, em favor do grão in natura. Isso ocorre porque o produto bruto tem isenção garantida e custos menores, enquanto a indústria de transformação enfrenta o “Custo Brasil” e a complexidade de recuperar créditos tributários acumulados. O resultado seria a exportação de empregos de alta qualidade (indústria) e a retenção de atividades de menor valor agregado.8

Além disso, a CNI aponta que a manutenção de créditos tributários para exportadores de commodities drena recursos que os estados poderiam usar para políticas industriais mais sofisticadas.

 

7.2. O Agronegócio e a Defesa da Soberania Comercial

 

Em contrapartida, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) defende a Lei Kandir como o pilar fundamental do sucesso do agronegócio brasileiro, que garantiu superávits comerciais robustos e reservas internacionais acima de US$ 300 bilhões.

A CNA argumenta que “imposto não se exporta”. Tributar a exportação de alimentos retiraria a competitividade do Brasil frente aos Estados Unidos e outros players globais. A entidade cita o exemplo da Argentina, onde as “retenciones” (impostos sobre exportação) causaram perda de market share e estagnação tecnológica no campo. Para o setor, o crescimento da produção agrícola induzido pela isenção gera desenvolvimento no interior do país, dinamizando o setor de serviços e máquinas, o que compensaria a renúncia fiscal direta.

Em audiências internacionais, a CNA utiliza a Lei Kandir como prova de que o Brasil opera sob regras de livre mercado, rebatendo acusações de dumping ou subsídios desleais.

 

7.3. O Setor Mineral e a Exaustão de Recursos

 

O caso da mineração é sui generis. Diferente da soja, o minério é finito. Movimentos sociais e a FAPESPA argumentam que a Lei Kandir atua como um subsídio à exaustão do patrimônio nacional. A crítica é resumida na frase: “O minério vai, o buraco fica, e o imposto não entra”. Isso levou estados como Pará, Minas Gerais e Amapá a criarem taxas de fiscalização (TFRM) para tentar capturar alguma renda da atividade exportadora, contornando a proibição de ICMS imposta pela Lei Kandir.

8. O Futuro: A Lei Kandir e a Reforma Tributária (EC 132/2023)

 

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132, em dezembro de 2023, altera as bases do sistema tributário nacional e, consequentemente, o papel da Lei Kandir.

 

8.1. A Mudança de Paradigma: Do “Benefício” à Regra Estrutural

 

A Reforma Tributária extingue o ICMS (origem/estadual) e cria o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), baseado no princípio do destino. No novo modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Dual, a desoneração das exportações deixa de ser um “benefício fiscal” (como era tratado na Lei Kandir) e passa a ser uma regra estrutural de desenho tributário, alinhada aos padrões da OCDE.

O imposto é cobrado apenas no consumo. Logo, o que é exportado não é consumido internamente e, portanto, não é tributado. Isso significa que a “essência” da Lei Kandir foi constitucionalizada e perenizada, não havendo risco de revogação por lei ordinária futura.

 

8.2. A Coexistência com a LC 176 até 2037

 

Uma questão crucial é a convivência dos dois regimes. A transição para o novo sistema tributário começa em 2026 e vai até 2033 (extinção total do ICMS). No entanto, a LC 176/2020 prevê repasses compensatórios até 2037.

O entendimento jurídico e político é de que os repasses da LC 176 continuarão a ser pagos independentemente da extinção do ICMS. Eles funcionam agora como um mecanismo de transição financeira para os estados exportadores, amortecendo a mudança para o princípio do destino (onde o estado produtor perde arrecadação em favor do estado consumidor).

Além disso, a Reforma cria o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), que injetará recursos da União nos estados para fomentar atividades econômicas. O FDR, em tese, substituirá a lógica de “guerra fiscal” e compensações pontuais (como a da Lei Kandir) por uma política de desenvolvimento regional mais robusta e menos litigiosa.

 

Conclusão

 

A Lei Kandir representa, simultaneamente, um sucesso macroeconômico de inserção global e uma tragédia federativa de financiamento público. Ao longo de 28 anos, ela cumpriu o objetivo de integrar o Brasil às cadeias globais de commodities, mas ao custo de fragilizar as finanças de estados estratégicos e aprofundar a primarização da economia.

O acordo da Lei Complementar 176/2020 não reparou historicamente as perdas — estimadas em centenas de bilhões pelo CONFAZ —, mas estancou a hemorragia política, oferecendo previsibilidade orçamentária (R$ 58 bilhões garantidos) em troca de paz judicial. Com a Reforma Tributária de 2023, o Brasil finalmente supera o modelo arcaico que gerou esse conflito, adotando um sistema onde a desoneração da exportação é técnica, e não um favor legal. O legado da Lei Kandir, contudo, permanecerá visível na infraestrutura, na pauta exportadora e nos balanços estaduais até o último pagamento da compensação, em 2037.

Referências citadas

  1. Do federalismo de cooperação ao federalismo canibal : a Lei Kandir e o desequilíbrio do pacto federativo – Senado, acessado em novembro 30, 2025, https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/543090
  2. Lcp87 – Planalto, acessado em novembro 30, 2025, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp87.htm
  3. AS DESONERAÇÕES DE ICMS NAS EXPORTAÇÕES E O PACTO FEDERATIVO BRASILEIRO: A AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISS – Index Law Journals, acessado em novembro 30, 2025, https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/download/7392/7033
  4. O Impacto da Lei Kandir sobre a Economia Paulista | FGV EAESP Pesquisa e Publicações, acessado em novembro 30, 2025, https://pesquisa-eaesp.fgv.br/publicacoes/gvp/o-impacto-da-lei-kandir-sobre-economia-paulista
  5. Tax Reform in Brazil: The Long Process in Progress – IADB Publications, acessado em novembro 30, 2025, https://publications.iadb.org/publications/english/document/Tax-Reform-in-Brazil-The-Long-Process-in-Progress.pdf
  6. Brazil: Tax Expenditure Rationalization Within Broader Tax Reform in – IMF eLibrary, acessado em novembro 30, 2025, https://www.elibrary.imf.org/view/journals/001/2021/240/article-A001-en.xml
  7. avaliação dos efeitos da lei kandir sobre a arrecadação de icms no estado do ceará, acessado em novembro 30, 2025, https://bnb.gov.br/documents/45787/665909/Avalia%C3%A7%C3%A3o+dos+Efeitos+da+Lei+Kandir+sobre+a+Arrecada%C3%A7%C3%A3o+de+ICMS+no+Estado+do+Cear%C3%A1.pdf/a7c4c77a-02d3-510a-d2d1-247e03719924?version=1.0&t=1638460255824&download=true
  8. Vista do Reprimarização e desindustrialização: análise dos impactos da lei kandir e da parceria com a china no complexo soja – PORTAL DE ANAIS UEMS, acessado em novembro 30, 2025, https://anaisonline.uems.br/index.php/ecaeco/article/view/2829/2899
  9. Vista do AVALIAÇÃO DOS EFEITOS DA LEI KANDIR SOBRE A ARRECADAÇÃO DE ICMS NO ESTADO DO CEARÁ – Ipea, acessado em novembro 30, 2025, https://ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/314/273
  10. APRESENTAÇÃO LEI KANDIR CFT CÂMARA 09 04 19 _ Governador, acessado em novembro 30, 2025, https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cft/arquivos/APRESENTAOLEIKANDIRCFTCMARA090419_Governador.pdf
  11. Relatório sugere que União pague dívida com obras – Assembleia Legislativa de Minas Gerais, acessado em novembro 30, 2025, https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2017/11/14_acerto_cntas_lei_kandir.html
  12. Estado acumula perdas de R$ 34,6 bilhões por desonerações da Lei Kandir – Portal do Estado do Rio Grande do Sul, acessado em novembro 30, 2025, https://www.estado.rs.gov.br/estado-acumula-perdas-de-r-34-6-bilhoes-por-desoneracoes-da-lei-kandir
  13. Fapespa apresenta no Senado Federal perdas do Pará com a Lei Kandir, acessado em novembro 30, 2025, https://www.agenciapara.com.br/noticia/1175/
  14. 25 anos de Lei Kandir: quem ganhou e quem perdeu? – MAM Nacional, acessado em novembro 30, 2025, https://www.mamnacional.org.br/2021/11/01/25-anos-de-lei-kandir-quem-ganhou-e-quem-perdeu/
  15. EXPORTAÇÕES E O DESENVOLVIMENTO REGIONAL: UM BALANÇO DA LEI KANDIR PARA O RIO DE JANEIRO, PARANÁ E MINAS GERAIS – SciELO Colombia, acessado em novembro 30, 2025, http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-63462019000100179
  16. Orientação da AMM garante compensação da Lei Kandir a todos os municípios de Mato Grosso, acessado em novembro 30, 2025, https://www.amm.org.br/Noticias/Orientacao-da-amm-garante-compensacao-da-lei-kandir-a-todos-os-municipios-de-mato-grosso-39312
  17. Lei Kandir: proposta aumenta em 130% a compensação a ser entregue pela União – CNM, acessado em novembro 30, 2025, https://cnm.org.br/comunicacao/noticias/lei-kandir-proposta-aumenta-em-130-a-compensacao-a-ser-entregue-pela-uniao
  18. DESONERAÇÕES DE ICMS, LEI KANDIR E O PACTO FEDERATIVO – Faculdade de Direito da UFMG, acessado em novembro 30, 2025, https://www.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/07/LeiKandir.pdf
  19. Compensação da União aos estados por Lei Kandir foi de apenas 8,9% em 2015 – Notícias, acessado em novembro 30, 2025, https://www.camara.leg.br/noticias/515410-COMPENSACAO-DA-UNIAO-AOS-ESTADOS-POR-LEI-KANDIR-FOI-DE-APENAS-8,9-EM-2015
  20. DESAFIOS DO FEDERALISMO COOPERATIVO NO ÂMBITO DO ESTADO DE MINAS GERAIS: PERDAS COM A LEI KANDIR, RESPONSABILIDADE FISCAL E O P, acessado em novembro 30, 2025, https://www.indexlaw.org/index.php/direitotributario/article/download/10400/pdf
  21. Em rede social, Fábio Freitas repercute ressarcimento das perdas da Lei Kandir ao Pará, acessado em novembro 30, 2025, https://www.alepa.pa.gov.br/Comunicacao/Noticia/6681/em-rede-social-fabio-freitas-repercute-ressarcimento-das-perdas-da-lei-kandir-ao-para
  22. Plenário homologa acordo entre União e estados sobre compensações da Lei Kandir – STF, acessado em novembro 30, 2025, https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443779&ori=1
  23. STF homologa compensação às perdas da Lei Kandir e União deve apresentar projeto de lei que regulamente os repasses – Portal do Estado do Rio Grande do Sul, acessado em novembro 30, 2025, https://estado.rs.gov.br/stf-homologa-compensacao-as-perdas-da-lei-kandir-e-uniao-deve-apresentar-projeto-de-lei-que-regulamente-os-repasses
  24. Sancionada lei que garante repasse de R$ 58 bilhões aos estados pelas perdas da Lei Kandir – Comsefaz, acessado em novembro 30, 2025, https://comsefaz.org.br/novo/sancionada-lei-que-garante-repasse-de-r-58-bilhoes-aos-estados-pelas-perdas-da-lei-kandir/
  25. Câmara aprova regras para compensação da Lei Kandir aos estados – Notícias, acessado em novembro 30, 2025, https://www.camara.leg.br/noticias/715619-camara-aprova-regras-para-compensacao-da-lei-kandir-aos-estados/
  26. Lcp 176 – Planalto, acessado em novembro 30, 2025, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp176.htm
  27. Acordo sobre Lei Kandir prevê R$ 8,7 bilhões para Minas – ALMG, acessado em novembro 30, 2025, https://www.almg.gov.br/acompanhe/noticias/arquivos/2020/05/19_acordo_lei_kandir.html
  28. RS recebe 276 milhões do acordo relativo à Lei Kandir – Secretaria da Fazenda, acessado em novembro 30, 2025, https://fazenda.rs.gov.br/rs-recebe-276-milhoes-do-acordo-relativo-a-lei-kandir
  29. Estado recebe a primeira parcela do ressarcimento da Lei Kandir – Agência Pará, acessado em novembro 30, 2025, https://www.agenciapara.com.br/noticia/24252/estado-recebe-a-primeira-parcela-do-ressarcimento-da-lei-kandir
  30. Lei Complementar Nº 176/2020 – Leis.org, acessado em novembro 30, 2025, https://leis.org/federais/br/brasil/lei/lei-complementar/2020/176/lei-complementar-n-176-2020-institui-transferencias-obrigatorias-da-uniao-para-os-estados-o-distrito-federal-e-os-municipios-por-prazo-ou-fato-determinado-declara-atendida-a-regra-de-cessacao-contida-no-2-do-art-91-do-ato-das-disposicoes-constitucionais-transitorias-adct-e-altera-a-lei-n-13885-de-17-de-outubro-de-2019
  31. Levantamento da CNI revela redução de 40% no volume de crédito para a indústria de transformação – Sinproquim, acessado em novembro 30, 2025, https://sinproquim.org.br/levantamento-da-cni-revela-reducao-de-40-no-volume-de-credito-para-a-industria-de-transformacao/
  32. CNA alerta para prejuízos ao agro com fim da Lei Kandir, acessado em novembro 30, 2025, https://www.cnabrasil.org.br/noticias/cna-alerta-para-prejuizos-ao-agro-com-fim-da-lei-kandir
  33. CNA defende agro brasileiro e nega práticas desleais de comércio em audiência nos EUA, acessado em novembro 30, 2025, https://noticias.r7.com/economia/cna-defende-agro-brasileiro-e-nega-praticas-desleais-de-comercio-em-audiencia-nos-eua-03092025/
  34. CNA defende agro brasileiro e nega prática desleal de comércio contra EUA, acessado em novembro 30, 2025, https://www.cnabrasil.org.br/noticias/cna-defende-agro-brasileiro-e-nega-pratica-desleal-de-comercio-contra-eua
  35. Lei Kandir — Senado Notícias – Senado Federal, acessado em novembro 30, 2025, https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/lei-kandir
  36. Estimativa dos valores que os estados receberão de compensação da Lei Kandir, acessado em novembro 30, 2025, https://comsefaz.org.br/novo/estimativa-dos-valores-que-os-estados-receberao-de-compensacao-da-lei-kandir/